quarta-feira, 13 de abril de 2011

João Cabral de Melo Neto II

O OVO DE GALINHA

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
e só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que a sopesa descobre
que nela há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas tornedas
num trabalho de toda a vida.

E se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos carais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
da pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
meaçam mais com o disparar
do que com a coisa que disparam.

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito tolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda de maneira
entre medrosa e circunspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

SERIAL (1959-1961)

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