quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O fim

(…) “O Príncipe estava calmo. Seu rosto não exprimia nem ira nem indignação.
- Agora, aquele mesmo em cujas mãos repousa a sorte de muitos e a quem súplica nenhuma conseguiria abrandar, esse mesmo curva-se diante dos senhores, com um pedido. Tudo será esquecido, apagado, perdoado; eu mesmo, em pessoa, intercederei por todos, se atenderem ao meu pedido. Eis o meu pedido: eu sei que não existem meios, intimidações ou castigos que possam erradicar a corrupção: ela já está muito enraizada. A desonrosa prática de receber propinas tornou-se necessidade – indispensável até a homens que não nasceram para ser desonestos. Bem sei que já é quase impossível a muitos remar contra a corrente geral. Mas agora eu sou obrigado, como num momento sagrado e decisivo, quando está em jogo o destino da pátria, quando para salvá-la todo cidadão oferece tudo e sacrifica tudo – eu sou obrigado a lançar meu apelo ao menos àqueles que ainda guardam no peito um coração russo e que ainda compreendem, um pouco que seja, o sentido da palavra “nobreza de alma”. Não vale a pena indagar quem aqui é mais culpado que o outro. Quem sabe, sou eu o mais culpado de todos. Talvez eu os tenha recebido com demasiada severidade, logo no começo; afastei, talvez, com a minha desconfiança excessiva, aquels dentre os senhores que tinham a intenção sincera de me serem úteis – embora pela minha parte eu também podesse reprová-los: se realmente eles tinham amor à justiça e queriam o bem de sua terra natal, não deveriam ter ficado melindrados com a arrogância dos meus modos; deveriam ter sufocado o seu amor-próprio e sacrificado suas sucetibilidades. Teria sido impossível que eu não tivesse chegado perceber sua dedicação abnegada e seu nobre amor à verdade, e não tivesse acabado por aceitar seus conselhos úteis e sensatos. (…) O problema que se nos defronta agora é que chegou a hora de salvarmos a nossa pátria. Que a nossa pátria está perecendo, não pela invasão de vinte tribos estrangeiras, mas por nossas próprias mãoes. Que já se formou, ao lado do governo legítimo, um outro governo, muito forte que o governo legal. Estabeleceram-se condições próprias, tudo tem preço marcado, e os preços já foram até levados ao conhecimento público. E estadista algum, embora seja o mais sábio de todos os legisladores e governantes, tem forças suficientes para remediar o mal, por mais que tente limitar a ação nefasta dos maus funcionários, nomeando para vigiá-los outros funcionários. Tudo será inútilenquanto cada um de nós nãp sentir que, assim como na época da revolta dos povos ele se armou contra os inimigos, assim ele deve armar-se e levantar-se contra a corrupção e a falsidade. É como homem russo, como irmão, ligado aos senhores pelos laços indissolúveis do sangue, que eu me dirijo agora a todos. Dirijo-me àqueles sentre os presentes que têm algum resquício de compreensão do que seja nobreza de ideias. Convido-os todos a se lembrarm do dever, que é o destino do homem, onde quer que ele se encontre. Convido-os a examinarem mais de perto o seu dever e a obrigação do seu cargo na terra, porque isto já se nos afigura de maneira distante e obscura, e mal-e-mal*...” (pág.445)

* Aqui o manuscrito se interrompe. (N. do T.)

GÓGOL, Nikolai. Almas Mortas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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“Em 1842, publicou Almas Mortas, romance no qual trabalhou durante mais de quinze anos. A partir de 1842 viveu como andarilho, deprimido por grave crise religiosa. Em 1852 queimou o segundo volume de Almas Mortas e se abandonou à morte por inanição”.

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