domingo, 1 de julho de 2012

Troca e irmãs


VERCHININ (passeando pela sala)
Muitas vezes penso: e se recomeçássemos a vida, desta vez conscientemente? Se vivêssemos uma vida como quem faz um rascunho, e pudéssemos vivê-la de novo passada a limpo? Então cada um de nós teria sobretudo tentado não se repetir e tentado criar condições de vida diferentes, uma casa florida, como esta, cheia de claridade...Tenho mulher, duas filhinhas...Mas minha mulher não tem saúde, etc etc etc...Então, se eu recomeçasse minha vida, não me casaria nunca. Nunca! (Entra Kulyguin com seu uniforme de professor de liceu). (pág.33)

ANDREI
Em Moscou, sentamo-nos em uma imensa sala de restaurante, sem conhecermos ninguém, sem que ninguém nos conheça, e, no entanto, não nos sentimos deslocados. Aqui, conhecemos todo mundo, todo mundo nos conhece e, no entanto, nos sentimos estrangeiros. Estrangeiros e solitários. (págs.53 e 54)

MACHA
Parece-me que todo homem deve ter uma fé, ou deve procurar uma fé, sem a qual sua vida torna-se vazia, vazia...Viver sem saber por que voam as cegonhas, por que nascem as crianças, por que há estrelas no céu...Não! Ou sabemos por que se vive, ou tudo não passará de ninharias atiradas ao léu...(pág.65)

TUSENBACH
Pois é isto...(Levanta-se) Sei que não sou belo, que não fui feito para ser militar. Enfim, as coisas são como são...Trabalharei. Se eu pudesse, uma única vez na vida., trabalhar por um dia a ponto de chegar em casa, à noite, arrasado de cansaço, cansaço de me atirar na cama e me fazer dormir imediatamente...(Dirige-se para a sala) Os operários devem dormir profundamente. (pág.66)

TCHEBUTYKIN (sinistro)
Que o diabo os leve a todos. Acreditam que sou um médico, que sei curar toda espécies de doenças, mas eu sei que esqueci tudo quanto sabia, que não me lembro de nada...de nada, de nada. (Olga e Natasha saem, sem que ele perceba) O diabo que os carregue. Quarta-feira passada, atendi a uma mulher, que morreu, e foi por minha culpa que morreu. Sim, culpa minha. Há vinte e cinco anos eu ainda sabia algumas coisinhas...Agora, não me lembro de nada. De nada. É bem possível que eu nem seja mesmo um homem, que eu apenas aparente ter pernas, braços e uma cabeça. Bem possível que eu não exita e somente imagine que ando, como e durmo. (Chora) Ah! Se, ao menos, pudéssemos não existir!...(Deixa de chorar e toma um ar sinistro) Que diabo! Antontem, conversava-se no clube sobre Shakespeare, Voltaire...Jamais os li, mas fiz um ar de ter lido. E todos os outros eram como eu. Que vulgaridade! Que baixeza! Revi a mulher que deixei morrer, quarta-feira. Revi...sim, revi tudo. E senti meu coração doer, pesado de nojo e de imundície...Então, corri a embriagar-me. (Entram Irina, Verchinin e Tusenbach, este à paisana, com uma roupa nova e na moda) (págs. 96 e 97)

VERCHININ
Bem...(Rindo) Quando pensamos em certas coisas, vemos o quanto tudo aqui é estranho. (Pausa) Logo que o incêndio começou, corri para minha casa. Chego e vejo que o prédio nada sofreu, que não está ameaçado. Mas encontro minhas filhas à porta, de camisola, e sua mãe não está lá. Em torno delas há pessoas que se agitam...cavalos, cães que correm, e no rosto das meninas havia uma tal expressão de inquietação, de terror, de súplica, de não sei o quê...Quando vi seus rostos, meu coração se confrangeu. Meu Deus, disse a mim mesmo, o que essas crianças terão de viver ainda, no decorrer de uma longa vida! Tomei-as nos braços, corri com elas...corri com elas, pensando apenas uma coisa: no que elas terão ainda a viver neste mundo infame. (Ouve-se o sino e logo em seguida há um momento de silêncio) Quando aqui cheguei, encontrei a mãe delas gritando, vituperando.(Macha entra, com seu travesseiro, e senta-se no divã) Vendo minhas filhas de camisola no degrau da porta, e a rua vermelha de incêndio, e o ruído terrível, pensei que isso deveria assemelhar-se ao que se passava, há muitos anos, quando o inimigo irrompia subitamente e pilhava e incendiava. No entanto, que difenreça entre o que foi e o que é! O tempo continuará a passar...apenas duzentos ou trezentos anos...e nossa vida atual parecerá então espantosa e dela rirão...e tudo quanto é o nosso presente será olhado como desastroso, pesado, muito incômodo e estranho. Ah! Que vida vai ser, que vida! (Ri) Perdão, estou filosofando. Permitam-me continuar. Sinto uma necessidade imensa de filosofar, estou em clima de filosofar. (Silêncio) Dir-se-ia que a humanidade toda dorme. E pensava: que vida será essa...a que vai vir...? Reflitam, porém: mulheres como vocês há apenas três nesta cidade. Mas, nas próximas gerações, haverá outras, e outras, e muitas outras...E há de chegar o tempo em que tudo estará mudado, no sentido que vocês têm das coisas...Um tempo em que se viverá como vocês vivem...Até que, mais tarde, vocês serão também ultrapassadas, porque nascerão seres muito melhores...(Ri) Estou hoje em um estranho estado de espírito...Sinto uma diabólica vontade de rir...(Canta) 'Tout âge a ses amours pour maître...Leurs feux nous font toujour renître...'* (Ri) (pág.102)

* 'Qualquer idade tem por mestre seus amores....Sempre nos fazem renascer seus ardores...' Trecho de uma ária da ópera Eugênio Oneguin, de Tchaikóvski.

TUSENBACH (com um gesto de impaciência)
Daqui a uma hora estarei de volta e de novo contigo. (Beija a mão) Minha bem amada...(Olha-a atentamente) Há cinco anos eu te amo e não consigo habituar-me...Sempre me pareces cada vez mais bela! Estess adoráveis e maravilhosos cabelos! Estes olhos! Amanhã eu te levarei daqui. Vamos trabalahr, seremos cumulados de alegrias, meu sonhos se tornarão realdade. E tu serás feliz. Há apenas uma coisa, uma simples coisa: não me amas. (pág.135)

ANDREI
Oh! Para onde partiste, meu passado? Onde estás? E era jovem, inteligente, sonhava, pensava belas coisas, presente e futuro iluminavam-se de esperanças...Por que, mal começamos a viver, eis-nos mortos, fracos, chatos, preguiçosos, indiferentes, inúteis, desgraçados?...Nossa cidade existe há duzentos anos, tem cem mil habitantes e não há nenhum entre nós que não seja semelhante a todos...Nem mesmo um herói, no passado ou no presente. Nem mesmo um sábio...Nem ao menos um pintor...Nem sequer um só homem notável em qualquer coisa sque excite a inveja ou o desejo apaixonado de imitá-lo. Nada se faz, além de comer e beber, dormir e depois morrer...Outros nascem e, também esses, comem, bebem e dormem e, para que o tédio não os embruteça definitivamente, põem variedades em suas vidas, como mexericos, infames, vodka, jogo, chicanas...e as mulheres enganam os maridos, os maridos mentem e fingem que nada percebem, e essa influência irresistívelmente vulgar pesa sobre as crianças, sufoca a centelha divina que vivia dentro delas...e elas se tornam cadáveres, tão miseráveis como seus pais e suas mães...(A Feraponte, com mau humor) Que queres comigo? (pág.138)

TCHEKHOV, Anton. As Três Irmãs. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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Eu já falei pra Dé, nessa vida trocamos o que já aprendemos, ela me ensina a ser mais amorosa e eu ensino ela a ser mais responsável.

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